Compreender as nuances e as possibilidades do planejamento sucessório é fundamental para garantir a preservação e a transferência adequada do patrimônio acumulado ao longo da vida. Então, o planejamento sucessório propicia, ao particular, ainda em vida, uma fórmula de como se dará a sucessão do seu patrimônio para seus herdeiros, após a sua morte. Inúmeras são as vantagens do planejamento da sucessão, destacando, dentre elas, a propensão em evitar conflitos familiares e a importante redução da carga tributária dependendo da estratégia utilizada. Além disso, o planejamento em vida evita o complexo, moroso e burocrático processo judicial de inventário. Ou seja, sem o inventário, os herdeiros têm acesso imediato aos bens do espólio.
De acordo com CAMILA VICTORAZZI MARTTA[1], planejar é estabelecer um plano a ser cumprido e planejamento sucessório é uma organização feita pelo titular da futura herança com o objetivo de destinar seu patrimônio aos seus futuros herdeiros. GISELDA HIRONAKA e FLÁVIO TARTUCE[2] possuem uma visão ainda mais esclarecedora sobre o que é planejamento sucessório, qual seja:
“Em suma, pode-se afirmar que o planejamento sucessório é o conjunto de atos e negócios jurídicos efetuados por pessoas que mantêm entre si alguma relação jurídica familiar ou sucessória, com o intuito de idealizar a divisão do patrimônio de alguém, evitando conflitos desnecessários e procurando concretizar a última vontade da pessoa cujos bens formam o seu objeto”.
Atualmente, muito se fala na criação de holdings patrimoniais e familiares como forma de planejamento sucessório. E está correto, sendo uma ferramenta valiosa nesse cenário. De qualquer forma, não é a única, existindo várias outras que, isolada ou conjuntamente, favorecem o planejamento da destinação dos bens e da preservação da segurança familiar: o testamento, o seguro de vida, a previdência privada, os fundos imobiliários para famílias com grande número de imóveis, as doações, dentre outros.
Fato é que o planejamento sucessório não pode ser visto como um ato único e dotado de apenas um dos institutos mencionados: o patriarca pode se valer de mais de uma das ferramentas disponíveis e o planejamento pode ser faseado de acordo com o momento familiar e a disponibilidade patrimonial.
É importante frisar que o planejamento sucessório vale para todos, como forma de evitar conflitos e burocracias. Assim, apesar de ser mais comum que o planejamento sucessório seja realizado por indivíduos e famílias com maior poder aquisitivo - já que as chances de uma entrada superior de ativos durante a vida do particular são maiores e, naturalmente, seu manejo e administração serão mais complexos, considerando a quantidade de negócios que essas famílias provavelmente já possuem -, é importante que as famílias com qualquer acúmulo patrimonial reflitam sobre a destinação dos bens em vida para preservar a harmonia as gerações seguintes.
Feito esse introito, abordar-se-á, aqui, duas relevantes formas de planejamento sucessório: o testamento e as doações. Elas podem ser usadas estrategicamente para uma transferência de patrimônio, visando a um planejamento eficiente e seguro. Ou seja, ambos são instrumentos jurídicos que possibilitam a organização e a distribuição dos bens conforme a vontade do indivíduo, de forma estratégica e segura.
O testamento é uma das formas mais tradicionais de planejamento sucessório. Trata-se de um documento legal que expressa as últimas vontades do testador em relação à distribuição de seus bens após o falecimento. Por meio do testamento, é possível especificar detalhadamente como os bens serão divididos entre herdeiros, legatários e instituições de caridade, por exemplo. Essa flexibilidade permite ao testador exercer um maior controle sobre a destinação de seu patrimônio, garantindo que seus desejos sejam respeitados.
O testamento, na percuciência de ELPÍDIO DONIZETTI[3], “é um negócio jurídico unilateral por meio do qual uma pessoa dispõe de seu patrimônio e faz outras disposições de última vontade para depois de sua morte, conforme artigo 1.857, caput e § 2º do Código Civil”.
Sendo um instrumento causa mortis, somente surtirão seus efeitos após a morte do testador, de modo que a sua principal característica é ser revogável até o momento da morte, o que permite sua alteração, quantas vezes forem necessárias, enquanto estiver o testador em vida. Ou seja, em se tratando de planejamento, a revogabilidade do testamento se revela como estratégia para o particular se organizar em quesito sucessório ainda em vida. Enquanto permanecer vivo, o particular tem a liberdade de dispor também o patrimônio que entrar posteriormente ao testamento, além da imprevisibilidade de surgirem outros herdeiros durante seu período de vida. Além disso, o testador pode revisar periodicamente o testamento para garantir que esteja atualizado e reflita fielmente a sua vontade enquanto planejador sucessório.
Quanto à doação, o art. 538 do Código Civil traz, o que também é reproduzido por ELPÍDIO DONIZETTI[4], que se caracteriza como um contrato por meio do qual uma das partes, denominado doador, se obriga a transferir a propriedade de uma coisa à outra parte, denominada donatária, por pura e simples liberalidade. De acordo com MARIA HELENA DINIZ[5], o conceito legal de doação contém quatro elementos fundamentais que o caracterizam. O primeiro deles seria a contratualidade:
“O nosso Código Civil considerou expressamente a doação como um contrato, requerendo para a sua formação a intervenção de duas partes contratantes, o doador e o donatário, cujas vontades se entrosam para que se perfaça a liberalidade por ato intervivos, distinguindo-se dessa maneira do testamento, que é a liberalidade causa mortis”.
Assim, as doações também desempenham um papel fundamental no planejamento sucessório. Ao transferir bens ainda em vida, o doador pode beneficiar seus herdeiros imediatamente, reduzindo potencialmente os impostos incidentes sobre a transmissão de patrimônio e evitando conflitos familiares futuros. Além disso, as doações permitem uma maior flexibilidade na distribuição dos bens, uma vez que o doador pode optar por realizar doações de forma gradual ao longo do tempo (faseamento), ajustando-as de acordo com suas necessidades e circunstâncias.
Veja: i) o testamento é um instrumento de planejamento sucessório que visa a um momento futuro; ii) o contrato de doação é um instrumento que observa o momento presente, uma vez que, apesar de revogável, suas hipóteses são extremamente restritas (art. 555 do Código Civil), abrangendo apenas casos de ingratidão ou por inexecução de encargo.
Ademais, na doação, por se tratar de um negócio jurídico unilateral, aplicam-se as normas gerais de nulidade e anulabilidade de negócios jurídicos, as quais estão contidas no art. 166 e art. 171 do Código Civil. Esse recorte é importante, pois, a despeito de qualquer estratégia, a doação, como um negócio jurídico, não deve ser utilizada para fraudes ou objetivos ilícitos: deve ser elaborada de acordo com a legislação vigente e atender aos objetivos do indivíduo de forma eficiente e segura.
Avançando, uma das grandes vantagens do uso do contrato de doação como forma de planejamento sucessório é a existência de cláusulas restritivas dos direitos dos donatários. Uma delas é a cláusula chamada reserva de usufruto vitalício, o que quer dizer que, até o momento de sua morte, o doador permanece como usufrutuário do bem, beneficiando-se do direito ao uso e à percepção dos frutos gerados pelo bem até o fim de sua vida.
Dentre outras condições sui generis, há previsão legal para a inserção das cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade. Cada uma dessas cláusulas desempenha um papel específico na salvaguarda do patrimônio, proporcionando segurança e estabilidade financeira aos indivíduos. A incomunicabilidade se refere à restrição de que os bens pertencentes a uma pessoa não possam ser compartilhados com seu cônjuge no caso de regimes de comunhão de bens (parcial ou universal). A impenhorabilidade, por sua vez, impede que o bem doado seja utilizado como garantia para o pagamento de dívidas ou outros compromissos do donatário. A inalienabilidade consiste na proibição de que os bens sejam vendidos, doados ou transferidos de qualquer outra forma, preservando-os intactos e impedindo que sejam dilapidados ou dissipados.
Propositalmente, a última cláusula restritiva que merece referência é a de reversão, dada a sua relevância: ela garantirá que, em caso de pré-falecimento de algum dos filhos (na hipótese de doação entre ascendente e descendente), o bem doado não será transmitido os cônjuges/companheiros (atuais ou futuros) na qualidade de herdeiros, mas, sim, retornará ao patrimônio dos doadores.
Atualmente, o grande desafio que os adeptos ao planejamento sucessório vêm enfrentando é a recente aprovação da reforma tributária, que modificou o regime de estabelecimento de alíquota do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) que, como o próprio nome evidência, deve ser pago ao fisco sempre que houver doação ou herança. Até então, a alíquota do ITCMD era estipulada pelo próprio estado, podendo ter porcentagem fixa ou progressiva, o que ajudava no processo de planejamento de estratégias sucessórias para minimizar as cargas tributárias. A partir da reforma, as alíquotas passarão a ser, necessariamente, progressivas, de modo que, quanto maior a quantia da doação ou da herança, maior a porcentagem da alíquota dentro do teto e piso estabelecidos por Lei complementar pelo respectivo estado. Como exemplo, no Estado de São Paulo, que sempre adotou a alíquota fixa de 4%, já tramita o Projeto de Lei (PL) nº. 7/24 que propõe a adequação da progressividade das alíquotas, em linha com a EC nº. 132/23, com a adoção de percentuais 2% a 8% sobre faixas que variam de R$353.600,00 a R$9.900.800,01.
Com efeito, apesar dos desafios após a aprovação da reforma tributária e o cenário incerto quanto às alíquotas do ITCMD - que impactam diretamente nas heranças e, principalmente, nas doações -, o testamento e o contrato de doação seguem sendo instrumentos amplamente utilizados no procedimento de planejamento patrimonial devido à sua segurança jurídica. Naturalmente, não há como impedir, em absoluto, os conflitos íntimos entre familiares e herdeiros em relação ao patrimônio, mas essas ferramentas oferecerão a segurança de que o patrimônio familiar estará devidamente organizado e administrado. Como consequência dessa realidade, surge o planejamento sucessório através da busca em criar outras soluções legais para uma melhor eficácia sucessória.
Portanto, o testamento e as doações representam ferramentas de planejamento sucessório – até no caso de constituição de uma holding patrimonial, por exemplo, as quotas sociais já podem ter a sua destinação determinada em vida -, de modo que elas são capazes de proporcionar uma transferência de patrimônio eficiente e segura, garantindo a proteção dos interesses do indivíduo e de seus beneficiários.
Ao compreender e utilizar adequadamente esses instrumentos, é possível assegurar a continuidade e a preservação do legado familiar de forma consciente e responsável, concluindo que:
a. doação é uma das principais ferramentas jurídicas do planejamento, pois existe na legislação uma gama de possibilidades dentro deste contrato, permitindo ao doador várias “saídas” e, ainda, reconhecendo a possibilidade de transmitir bens ainda em vida, de forma a antecipar questões que só seriam trabalhadas após a sua morte e que desgastariam o patrimônio e o núcleo familiar como um todo.
b. o testamento, que também pode ser utilizado em concomitância ao contrato de doação, traz questões distintas, de modo que o uso desse instrumento, por prever a distribuição patrimonial ainda em vida, mas com a produção de efeitos somente após a morte do titular do patrimônio, permite que este continue sua vida normalmente, sendo proprietário e no uso e fruição de seus bens.
Autor: Wilton João Caldeira da Silva, advogado especialista em Direito Empresarial e sócio na Pádua Faria Advogados.
[1] MARTTA, Camila Victorazzi. Holding Patrimonial Familiar como meio de efetivação do direito sucessório. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello (org.). Grandes temas de família e sucessões. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2016, p. 321-347, p. 336
[2] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 433-450, p. 433.
[3] DONIZETTI, Elpídio. Curso de Direito Civil. São Paulo: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9788597027921. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597027921/. Acesso em: 12 mai. 2024.
[4] DONIZETTI, Elpídio. Curso de Direito Civil. São Paulo: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9788597027921. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597027921/. Acesso em: 12 mai. 2024.
[5] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 3. v. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 252.
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